Profª. Dra. Kazuko Uchikawa Graziano
Profª. Dra Maria Clara Padoveze
Profª. Dra. Camila Quartim de Moraes Bruna
Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo
Um recente acontecimento que abalou a enfermagem brasileira dedicada ao Centro de Material e Esterilização (CME) foi a publicação da Resolução nº 723, de 25 de março de 2022, regulamentando as atividades do farmacêutico no processamento de produtos para saúde e contendo intenção explícita de considerar como competência privativa do farmacêutico. Não fosse este conteúdo ameaçador do 3º parágrafo da referida resolução não nos causaria tamanha comoção como enfermeiros de CME, uma vez que temos modelos bem-sucedidos em outros países onde enfermeiro e farmacêutico compartilham interdisciplinarmente os processos de trabalho de um CME. Diz o parágrafo:
“Considerando o disposto nos artigos 15 e 41, ambos da Lei Federal nº 5.991, de 17 de dezembro de 1973, bem como a necessidade de ampliar e definir a competência privativa do farmacêutico, conforme o disposto no artigo 1º do Decreto Federal nº 85.878, de 7 de abril de 1981”...
Entendemos que a descabida competência privativa do farmacêutico nas atividades do processamento de produtos para saúde não está ainda consumada, mas, sem dúvida deixa clara a intenção ameaçadora na referida resolução.
É inegável que o mercado brasileiro “aposta” no enfermeiro para ser gestor do CME! E valorizamos isso como um privilégio nosso! E, como enfermeira, perder a oportunidade de ocupar esse espaço é inadmissível! Mas, temos consciência de que o espaço será nosso enquanto demonstrarmos competência em conhecimentos, ações e atitudes!
Está sendo fácil? Infelizmente não! Mas temos uma força inexplicável de SUPERAÇÃO e somos capazes de vencer a despeito do medo e insegurança! Temos espírito guerreiro de ir atrás para nos instrumentalizarmos!
Nossa história é parte dessa evidência. No Brasil, foram os enfermeiros que tiraram o CME das sombras e dos porões dos hospitais e alçaram esse serviço a um elevado nível de qualificação. Foram os enfermeiros também que, apoiado por sociedades de especialistas e conselhos de classe, lutaram e continuam lutando para que somente pessoal qualificado possa atuar nessa unidade, que os serviços obedeçam a padrões e normas rígidas. Em muitas das normativas atuais em âmbito federal e dos estados os enfermeiros deram sua contribuição de maneira ativa.
À luz da RDC Anvisa 15/2012 que dispõe sobre requisitos de boas práticas para processamento de produtos para saúde e dá outras providências, no artigo 27, consta que “Todas as etapas do processamento de produtos para saúde devem ser realizadas por profissionais para os quais estas atividades estejam regulamentadas pelos seus conselhos de classe". Assim sendo, a colocação da Resolução 723 comete uma ingerência em considerar, mesmo ainda como intenção, algo que possa ser privativo do profissional farmacêutico quando é de todos que comprovadamente os conselhos de classe reconhecerem competência. O Conselho Federal de Enfermagem, pouco mais de um mês após a publicação da RDC Anvisa 15/2012, publicou a Resolução nº 424, em 19 de abril de 2012 normatizando as atribuições dos profissionais de Enfermagem em Centro de Material e Esterilização e em empresas processadoras de produtos para saúde.
Da mesma forma, em 6 de dezembro de 2012, o Conselho Federal de Farmácia, no inciso XI do artigo 5° da Resolução/CFF nº 568 definiu como uma das atribuições do farmacêutico “atuar junto à central de esterilização, na orientação de processos de desinfecção e esterilização de produtos para saúde, podendo inclusive ser o responsável pelo setor”.
A despeito das graduações de Enfermagem no geral não formarem a contento o enfermeiro especificamente para atuação na prática em CME, é o profissional enfermeiro que indiscutivelmente tem produzido evidências científicas robustas quando questões dilemáticas não respondidas surgem no cenário do CME permitindo a prática baseada em evidências. Talvez seja este o motivo principal dos enfermeiros ocuparem majoritariamente os postos de gestão em CME no território nacional. Soma-se a este motivo o fato da Associação Brasileira de Enfermeiros de Centro Cirúrgico, Recuperação Anestésica e Centro de Material e Esterilização (SOBECC) publicar desde a sua criação em 1991, as diretrizes de boas práticas para processamento de produtos para saúde, sendo a mais recente a 8ª edição, 2021. Também tem surgido no cenário dos cursos de pós-graduação estrito senso aqueles dedicados exclusivamente ao CME e não mais algumas poucas e insuficientes abordagens como apêndice de outros cursos como de Controle de infecção e Enfermagem em Centro Cirúrgico.
A publicação da Resolução 723/2022 do CFF, de alguma forma trouxe o CME na ordem do dia das discussões! É preciso aproveitar a oportunidade para tornar o CME visível para "crescer e aparecer" como aconteceu com Comissão de Controle de Infecção Hospitalar (CCIH) por ocasião da morte do presidente Tancredo Neves que foi atribuída a infecção relacionada a assistência à saúde.
Sugere-se como uma das ações concretas levar o conhecimento do ocorrido para as presidentes das Comissões de Graduação das Escolas de Enfermagem do país convocando-os para discutir a necessidade da formação sólida do enfermeiro para atuar nesta área, pautada no fato de majoritariamente o Enfermeiro ocupar no Brasil o posto de gestora de CME. Reconhecemos que a competência em conhecimentos, em prática e nas relações é uma das pedras fundamentais para nos estabelecermos como gestores competentes em CME.
Aproveitando este momento, há uma urgente necessidade dos enfermeiros gestores atuais de CME apropriarem-se dos fundamentos básicos da ciência do processamento de produtos para saúde, assim como de outras ciências que o CME mantém uma forte dependência como dos conhecimentos da física, da engenharia, da química, da microbiologia da epidemiologia, da informática e outros, exigindo autodidatismo, busca de conhecimento formal, e parcerias com especialistas.
A Resolução em apreço do CFF merece também ser discutido à luz da BIOÉTICA quando o respeito pela competência de outra categoria profissional deve ser reconhecido e valorizado e não anulado por uma ameaça contida numa resolução.
Por fim, há que se considerar que os técnicos e eventuais auxiliares de enfermagem que atualmente fazem parte da nossa equipe de CME perderão certamente os postos de trabalho se a gestão do CME for substituída pelos farmacêuticos, pois a equipe será reorganizada com técnicos operacionais e administrativos, os já existentes auxiliares de esterilização quando o gestor é farmacêutico. É um fato doloroso não só na questão da perda de vínculos empregatícios, mas principalmente na qualidade do trabalho em CME. Nós enfermeiros acompanhamos os ganhos de qualidade nos processos de trabalho quando a categoria atendente de enfermagem foi extinta e passamos a trabalhar na equipe somente com auxiliares e técnicos de enfermagem!
Não acreditamos no combate entre categorias profissionais, mas sim acreditamos que devemos ir na direção do melhor consenso e bom senso juntamente com entidades oficiais detentoras de força política, principalmente os nossos Conselhos de Enfermagem em nível federal e regional, juntamente com as associações especializada!
Brasil: pode deixar conosco, de CME o enfermeiro entende!